sábado, 9 de outubro de 2021


09 DE OUTUBRO DE 2021
CAPA

Incomparável Maria Rita

De volta à Capital para show neste sábado, a cantora conta como o período em casa melhorou sua relação com as autocobranças: "A energia nervosa que carrego baixou"

Maria Rita volta a Porto Alegre para soltar sua voz, o que para ela é a sua própria existência. Sua garganta é seu mundo, como a própria artista define. Na cidade natal de sua mãe, Elis Regina, a cantora retornará com o show Samba da Maria, neste sábado, no Auditório Araújo Vianna aliás, o evento marca a retomada da casa.

No show, Maria Rita apresenta mais de duas horas de samba. Quando não está cantando, é possível ouvi-la gargalhando. A cantora de 44 anos tem o riso fácil, diverte-se relatando suas histórias e emoções. Ao mesmo tempo, pode soar mais firme quando aborda uma convicção. É intensa e dedicada ao trabalho.

Sem poder estar na estrada, a cantora conseguiu se dedicar completamente a sua filha, Alice, oito anos (fruto da relação com Davi Moraes). Também é mãe de Antonio, 17, que vive com o pai, o cineasta Marcus Baldini. Maria Rita não quer que seus filhos passem pelas comparações com a "mãe famosa" - para a artista, isso é inevitável. Mas garante que estará ao lado deles quando precisarem.

Maria Rita cresceu sem a mãe por perto: Elis morreu em 1982, quando ela tinha apenas quatro anos. Em participação no programa do canal E! Drag Me As a Queen Celebridades, exibido em setembro, confessou ter sentido sua mente bagunçada ao entender como sua mãe morreu.

- Senti muita raiva, porque eu julguei a minha mãe. A forma como ela morreu não está certa, todo mundo sabe que isso é errado - admitiu. - Entrei num conflito de "como assim isso aconteceu tão perto de mim?". Até entender o que é. É sempre um processinho, com o tempo. Eu interiorizava muito.

Em duas décadas de trajetória, Maria Rita sofreu muitas comparações com a mãe, sobretudo no início. A cantora decidiu focar em sua música, cada vez mais, como uma necessidade. Como forma de se autoaceitar - algo que foi aprendendo com o passar do tempo.

- Minha relação com o cantar é de sobrevivência. Não é para ser famosa, não é para ser a filha da Elis. É para sobreviver - pontua.

No bate-papo a cantora abre o jogo sobre autoestima, como a mudança drástica de visual na pandemia, a relação com os filhos e a carreira.

Você volta à Capital com o show Samba da Maria. O que podemos esperar do reencontro com o palco?

Não é só o frio na barriga de subir no palco, que eternamente vou sentir. Desta vez, as variáveis são fora do controle. Não é só o que o público vai achar ou se vou estar cantando bem. Agora estou lidando com a incerteza e a insegurança de um vírus. De como cada um pensa o isolamento social e o uso de máscaras. Estou apreensiva. Por outro lado, é simbólico que seja em Porto Alegre, a primeira cidade que me apresentei fora do eixo Rio-São Paulo quando comecei a cantar profissionalmente. Vim grávida do meu primeiro filho, ninguém sabia. Pode ser um bom sinal.

Como é a sua relação com a cidade natal de sua mãe?

É muito simbolismo e muito amor. Fico emocionada em ver a forma como o gaúcho ainda trata a minha mãe. O primeiro show de Redescobrir (turnê que ela interpretava sucessos de Elis) ocorreu em Porto Alegre, em 2012. Foi uma catarse!

Você costuma passear por aqui?

Só vou a trabalho. Raramente consegui esticar. Tenho família aí, sou próxima de uma prima por parte de mãe. Mas vou contar um segredo. Olha a louca e rebelde que sou: vou esticar o feriado em Porto Alegre. Primeira vez em 20 anos de carreira! Minha prima já fez um roteiro, diz que não vou dormir (risos).

Neste período sem fazer shows, você passou por alguma transformação interna?

A primeira coisa que bateu e que quero levar para a vida é isso de viver um dia de cada vez. Até pela natureza do meu trabalho, sempre penso muito para frente. Estou sempre me planejando. Qual vai ser a próxima turnê? A pandemia me amarrou. Não tinha projeto à frente. Agora, com a luz no fim do túnel, consigo vislumbrar. A sensação que tenho é que toda aquela energia nervosa que carrego constantemente baixou. Então, consigo sentar com a minha filha e fazer outras coisas com a calma que não tinha como ter antes. Era tudo muito frenético. Mudou um pouco a loucura: cuido da casa e da filha e, em terceiro lugar, cuido da carreira. Antes era o contrário.

Falando em mudanças, você foi uma das mulheres que decidiu raspar o cabelo na pandemia.

A mulher é cheia de camadas, cada uma correspondendo a um papel social. Se despir dessa forma, se olhar sem moldura nenhuma, é muito impactante. Eu recomendo (risos). É um exercício grande. Até nas tradições culturais, o cabelo da mulher é uma ferramenta de poder, de certa forma.

Ou ainda mais um elemento que colocam como cobrança.

Exatamente. Sabe o que achei curioso? O uso da palavra "coragem" logo que apareci com o cabelo raspado. "Que coragem que você teve de raspar o cabelo". Não, gente, cabelo cresce! Coragem a gente tem que ter para sair de relacionamento abusivo. Coragem temos que ter para criar filhos neste mundo. Coragem para seguir os sonhos. Isso é ter coragem! Meu cabelo mesmo já está uma peruca. É mato: cresce. Essa imposição de que o cabelo da mulher "tem que" ser lisinho, bonitinho. Estou fora. Cansei. Nunca curti esse negócio, e agora, com 44 anos, 20 de carreira, dois filhos com saúde, no meio de uma pandemia, ah, não! Não vem com essa, não.

Que outros processos foram fundamentais na sua autoestima?

Fui uma criança baixinha e magrinha. Os meninos da escola me zoavam quando batia vento: "Segura a Maria que ela vai voar". Na adolescência, ganhei peso. Já tem que se adaptar aquele corpo estranho. Aí vem a sociedade: "Tem que emagrecer". Faziam chantagens comigo: "Se você emagrecer, te dou um presente". É cruel! Quando fui para a faculdade, emagreci. Fui engordar novamente depois que a Alice já era nascida. De uns cinco anos para cá, engordei uns 10 ou 15 quilos. Ainda hoje, com 44 anos, sendo uma mulher independente e bem-resolvida, me sinto insegura.

Sobre ser mãe na pandemia: como foi entreter e ensinar a Alice durante tantos meses em casa?

A Alice é muito sensível e parceira. Impressionante a capacidade dela em acompanhar os adultos nos afazeres mais chatos do planeta. Quando está de saco cheio, fala com delicadeza. Fala "mãe, estou cansada", mas não faz pirraça porque percebe que o que estou fazendo tem importância para mim. Ela não quer invadir. Foi determinante para a forma como a quarentena foi conduzida aqui. Tenho sorte em ter uma criança com tamanha maturidade emocional. Passamos pela fase mais hardcore da pandemia sendo parceiras.

E com o seu filho Antonio, adolescente, como é a relação?

Com a pandemia, a gente se vê pouco. Enquanto a Alice fica com o pai, vou até São Paulo para vê-lo. Ele é bonito, doce e divertido. Tem vezes que vou e não o vejo, aí quero esganá-lo (risos). "Mãe, a onda tava boa na praia e fui surfar". Concluo que ele está fazendo isso porque sabe que, quando voltar, vou estar de braços abertos. Não faço drama porque vai ter um dia que ele vai convidar: "Mãe, vamos almoçar?". Isso é bom, porque criei meu filho como um cara seguro da afetividade que sente, e da afetividade que as pessoas sentem por ele. Ponto para mim (risos).

Pensando nos dois, teme que haja comparações com a "mãe famosa"?

Não temo porque sei que vai ter (risos). É um fato. Mas eu estou aqui, vou segurar essa onda com eles. Eu passei por isso sozinha, o que não acontecerá para os dois. Isso levando em consideração que a vida os leve para esse caminho artístico. Particularmente, acho que não vai ser o caso.

E para você, como foi lidar com essas cobranças? Acha que lhe limitou ou coibiu de alguma forma?

Por um tempo, quando era mais nova. Para mim, as pessoas queriam que eu cantasse para preencher o vazio delas. Era muito ruído. Ficava com aquilo martelando na cabeça. A vida, vagarosamente em seu tempo sábio, foi me levando para outro entendimento. Passei por experiências de fortalecimento interno, de solidão, de sombras. Até que entendi que nada disso importava, se eu não cantasse, eu não seria um ser humano legal. Todo o resto virou ruído, meu foco virou a necessidade da música. As comparações batiam em mim quando vinham agregadas de agressividade. "Quem ela pensa que é para ser tão parecida com a mãe?". Quase desisti por isso. Não levei tantos anos da minha vida para encontrar um lugar de relação legal com a minha mãe, de ausência dela, para vir esse bando de desocupado e me colocar contra ela. Aí eu paro. Naquele momento, era mais importante a relação com a minha mãe do que a sobrevivência como cantora. Mas aí passou (risos).

Em sua participação no programa Drag Me As a Queen, você passou por um momento especial quando a apresentadora Ikaro Kadoshi te pediu perdão em nome do público. Falou que "durante muito tempo, as pessoas foram cruéis contigo, mas que nunca pararam para pensar que você perdeu milhares de coisas".

Não esperava. Nem sabia que precisava ouvir. A reação que as pessoas estão tendo é muito forte. Já tinha recebido um pedido de perdão de uma pessoa com quem dividi dois dias de trabalho intenso. Ao término, essa pessoa disse que queria pedir desculpa, que quando meu nome foi cogitado para o projeto, foi contra. "Ela é difícil, é antipática". "Não era nada disso, que deixei essa lenda urbana tomar conta". Nós dois chorávamos. Um pedido de desculpa desse nível da Ikaro em relação à minha mãe, as expectativas e cobranças que fizeram, foi forte e libertador. Pode ter levado 20 anos, mas tem gente que está entendendo.

Essa fama de antipática seria uma lenda urbana que cresceu?

Não deixei crescer, as pessoas têm má vontade. É sabido que toda mulher forte, decidida, tem essa fama. Quer falar que sou antipática, quando na verdade sei que sou determinada. Ah, a Maria Rita não dá entrevista antes de show. Não dou. Meu instrumento é a minha voz, que aqueço antes do palco. Vou ter fama de antipática por isso? Se entende isso como antipática, que assim seja. Lamento.

 WILLIAM MANSQUE

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