sábado, 9 de outubro de 2021


09 DE OUTUBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

O ESTOICO MODERNO

Foi nas ruínas do sonho de uma pólis livre e próspera que Platão (427-348 a.C.) viu seu mestre Sócrates ser executado por Atenas, em 399 a.C., e escreveu sua utopia antidemocrática, a República. A Atenas de Péricles e dos grandes poetas trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a rica cidade plena de saber, beleza e poder, sucumbiu aos maus pensamentos dos homens da guerra e apostou em um litígio com Esparta, a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), de que sairia como todos saem das guerras, derrotados. Na era seguinte, a pergunta foi: o que fazer quando o mundo desaba?

Assim como Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) não abandonou a busca por solução política; comparou as constituições de dezenas de cidades e redigiu, na fase final de sua obra, o tratado Política, em que desponta o tema que rege também os livros que dedicou a seu filho Nicômaco e a seu melhor discípulo, Eudemo: a ética. Para comunidades e indivíduos, a meta maior, a felicidade (eudaimonia), pode ser alcançada por meio de virtudes e de boas escolhas. Por ironia da história, foi o mais poderoso pupilo de Aristóteles, Alexandre III de Macedônia (dito o Magno, 356-323 a.C.), quem pôs fim à reflexão política em Atenas, após derrotá-la, com seu pai Filipe II, na Batalha de Queroneia (338 a.C.). Os pensadores da geração seguinte já não sonhavam com um regime decente, mas sim em como viver bem apesar das agruras da vida. Foi então que floresceram as três escolas éticas da última fase da filosofia clássica, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo; as soluções eram, respectivamente, viver fora do sistema, cultivar a felicidade ou buscar a serenidade.

Essas filosofias tiveram enorme sucesso no mundo antigo e ressurgiram com força na modernidade, para insuflar a vida nova no Renascimento, e para dar parâmetros às éticas do indivíduo. Na era atual, as adversidades históricas reanimaram as fontes éticas e atualizaram os programas do estoicismo. É então que despontam pensadoras como Philippa Foot (1920-2010) e Martha Nussbaum, a célebre autora de A Fragilidade do Bem (1986), com questões que tocam em cada um de nós: é possível ser feliz? Para tanto, qual o lugar da política e qual o papel da ética?

Do estoicismo antigo, sobrevive o conceito de apatheia (indiferença), assim transliterado do grego para não o confundirmos com a palavra correlata, apatia. O estoico não nega nem teme a ação, mas a realiza com serenidade para cumprir os deveres que tocam a cada um, na vida e em sociedade. Porém, é preciso evitar que as experiências no mundo nos imponham sofrimento, e isto exige um exercício mental, de cunho ético e psicológico, sujeito a constantes provações e aperfeiçoamentos: a auto-observação (reflexão) e o autocontrole. É filosofia analgésica, mas que não nega as emoções, apenas as domina para que descartemos as que nos ferem enquanto cevamos as que nos nutrem.

Para não sucumbirmos à angústia e resistirmos ao teatro de horrores que ora nos assombra, mas também para cuidarmos do que resta da pólis, sejamos todos estoicos modernos, e tratemos da felicidade possível.

FRANCISCO MARSHALL

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

14 de Setembro de 2024 MARTHA Mar e sombra Entre tantos títulos, cito dois: o magnífico Misericórdia, da portuguesa Lídia Jorge, e Nós, da b...

Postagens mais visitadas