sábado, 26 de julho de 2025



26/07/2025 - 13h00min
Martha Medeiros

É pela imperfeição que me enamoro

Andamos obcecados por qualidade técnica, filtros que eliminam defeitos, nenhum ruído escapando, nenhum fio solto, a artificialidade substituindo o que é verdadeiro. Também somos aquele ser indefinido por trás do espelho embaçado no banheiro.

Meus pais sempre me pareceram, aos olhos da criança que fui, perfeitos. A Família Real de Porto Alegre. Eu agradecia a Deus por ter nascido em um lar tão abençoado, onde tudo funcionava, e ai de quem duvidasse. Até que cresci e passei eu mesma a duvidar: ora, quem é perfeito? Eu não iria pagar o mico de passar o resto da vida inebriada pela própria ilusão. Passei a glorificar o imperfeito e segui amando todos eles.

Resultado: até hoje mantenho atração pelo que não é 100%. Peguei ranço da correção absoluta. O 100% é uma certificação estática, aprisionada, não há mais para onde ir. Ora, de que jeito conceber a vida sem movimento? Estou longe de desprezar genialidades, como uma foto de Sebastião Salgado, uma página de Guimarães, o canto do Caetano, a entrega cênica das Fernandas, mãe e filha. Aproximam-se do sagrado. Mas quando desço desse altar e caio no mundano, é pela imperfeição que me enamoro. Meu coração é off-Broadway.

Todo esse preâmbulo para dizer que exalto o que está fora de foco. O abandono da excelência a favor da essência. Andamos obcecados por qualidade técnica, filtros que eliminam defeitos, nenhum ruído escapando, nenhum fio solto, a artificialidade substituindo o que é verdadeiro. A essência, ao contrário, é inexata, transcende, se move, esparrama. A essência não se falsifica, transforma a própria falha em gozo. Sabe que o excelente, ou é um gênio, ou um impostor.

Adoro, especialmente, fotos desfocadas, com sua imperfeição poética, humana. São retratos em movimento: da gente dançando, correndo, gesticulando. Somos borrões capturados por olhares objetivos, mas não há quem possa nos reduzir a uma única dimensão. Temos várias versões sobrepostas, somos reais e fictícios, seres indeterminados fazendo o possível para se enquadrar, só que um pedaço de nós sempre invade o contorno limitador e escorre para fora. Queremos ser vistos com nitidez, eu sei, mas também somos aquele ser indefinido por trás do espelho embaçado no banheiro. Estarei dando razão ao ébrio que enxerga três de nós, embriagado?

Está parecendo que quem bebeu fui eu, mas o álcool fica para depois: é a arte a única culpada pelos meus lampejos. Este texto foi inspirado por uma visita recente que fiz ao museu L´Orangerie, em Paris. A mostra chama-se Dans Le Flou e expõe várias obras, de 1945 até aqui, que foram criadas propositalmente desfocadas. São várias pinturas, fotos e trechos de filmes, e os curadores ainda criaram paredes translúcidas, para que a gente enxergue apenas o espectro dos outros visitantes na sala ao lado. Para quem tiver a sorte de estar por lá, a exposição fica até 18 de agosto. Saindo do museu, aí sim, tome um vinho por mim e divague à vontade, também. 

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