
22 de Novembro de 2025
J.J. CAMARGO
A figura do cuidador
Um dos pilares no trabalho de um médico é o acolhimento explícito, que gera a certeza da permanência como derradeira retaguarda. "Às vezes, o maior ato médico é simplesmente não ir embora." (Luke Fildes)
A futilidade das relações pessoais pode se expressar de várias maneiras. Em nenhuma situação ela é tão danosa como quando um dos envolvidos está fragilizado. A Maria Amélia provou um modelo cruel porque, além do descaso, ainda viveu uma terrível reversão de expectativa. E a mim sobrou a má sorte de ter indicado o algoz do seu ingênuo entusiasmo.
- Na semana passada, com uma crise de dor que não passava, estive no consultório três vezes, e ele foi um amor. Até que chegou a sexta-feira! - disse ela. - Depois de uma pausa para recompor fôlego e ânimo, ela completou: - Insegura pela demora em superar a crise, e assustada pela proximidade do fim de semana, perguntei: o senhor poderia fazer o favor de me dar o número do seu celular para alguma emergência? Ele mudou o tom de voz e, irritado, me disse: "Crises fora de hora se tratam em emergências. Que aliás, existem para isso!".
Dei um tempo em silêncio e esperei que ela anunciasse que tinha terminado o desabafo. Não tinha. Ela ainda estava com a indignação a meio pescoço:
- Enquanto aparentemente escrevia o endereço da tal emergência, ele conseguiu ser mais cruel quando disse com ar de deboche: "Quem sabe a senhora trata de melhorar para não precisar mais de nenhuma consulta?". Levantei, girei nos calcanhares e fui embora, furiosa.
O comentário final mostrou que ao menos o senso de humor estava de volta, intacto: - Caminhando a passos largos a caminho de casa, descobri que a raiva aumenta muito a força das minhas pernas.
Não tendo justificativa possível, me limitei a ouvir, esta que é última atitude solidária diante do absurdo. Tudo mais que se dissesse perdera o sentido, porque aquele olhar afiado de "esse tipo nunca mais" estava sacramentado pela violação de um dos pilares do cuidado do outro, que só completa se for incondicional: o acolhimento explícito, que gera a certeza da permanência como derradeira retaguarda.
E o cotidiano está repleto desses exemplos didáticos, em que a presença do cuidador é essencial e inadiável. Com mais ou menos glamour, mas com o mesmo significado para os envolvidos, isso ocorreu no naufrágio do Titanic com o comandante priorizando a saída dos passageiros, ou no pouso do avião avariado no Rio Hudson em Nova York, ou, bem recentemente, no incêndio bizarro em Porto Alegre de um ônibus lotado de estudantes de Vacaria, em que todos sobreviveram ilesos, porque a fuga foi orientada por um dos meninos com treinamento de bombeiro mirim. E no final da fila estava ela, a guardiã natural dos nossos filhotes, e última a sair: a professora, anônima, indefectível e silenciosa.
Sem crachá, muitas vezes fica difícil identificar esses invisíveis que circulam por aí, sem alarde, saciados pelo fascínio de cuidar do outro.
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