
EM FOCO
Três anos após o início da invasão das tropas russas, Rodrigo Lopes, jornalista e colunista de ZH, viajou à Ucrânia. Nesta reportagem, ele descreve como os ucranianos em Kiev criaram uma rotina mesmo sob a ameaça de ataques de mísseis e drones
O dia a dia à sombra da guerra
São 9h40min (3h40min em Brasília) em um dos principais acessos rodoviários a Kiev, ou Kyiv, como preferem os ucranianos - e essa não é só uma questão estilística. Para a população, que desde 24 de fevereiro de 2022 vê seu país correr o risco de desaparecer do mapa, adotar a escrita e a pronúncia dos antepassados (e não o Kiev, derivado do russo, os agressores) é uma reafirmação da identidade nacional, da Ucrânia independente e soberana.
É uma terça-feira comum na cidade fundada no século 5 e que mistura, na arquitetura, raízes da Rus de Kiev, um grande reino medieval entre os mares Báltico e Negro, onde hoje estão localizadas Ucrânia, Belarus e a porção europeia da Rússia, igrejas ortodoxas em estilo bizantino, o classicismo herdado do império czarista, até os blocos de concreto do período soviético e as construções modernas da Ucrânia independente.
Há congestionamentos, moradores frequentam uma feira de frutas e verduras na entrada da capital e, na Praça Maidan, onde retumba a alma da resistência ucraniana, trabalhadores brotam da estação de metrô, para chegar ao trabalho.
Próximo ao Monumento da Independência, alguns pedestres se permitem uma rápida reverência no labirinto de bandeiras ucranianas, nas cores amarelo e azul, permeadas por fotografias dos soldados (considerados heróis) que tombaram nestes três anos e sete meses de guerra com a Rússia.
Quarenta minutos atrás, na cidade de Lviv, a cerca de 500 quilômetros de Kiev, como fazem todos os dias, às 9h, os moradores pararam, em um minuto de silêncio em homenagem aos mortos. A pausa, obedecida sob o comando dos alto-falantes, é contada, segundo a segundo, por uma batida seca como a de um martelo no metal. Estejam onde estiverem, na recepção do hotel, no caixa do supermercado, todos param e ficam de pé. Depois, voltam a seus afazeres.
É assim o dia a dia nas duas maiores cidades da Ucrânia. Kiev tem avenidas largas e grandes parques. Mistura o brutalismo da era soviética com prédios tecnológicos, como o NSC Olimpiyskiy, casa do Dynamo Kiev. É movimentada, moderna. A luz do outono a deixa mais brilhante e colorida. Na capital que Vladimir Putin sonhava conquistar em três dias, o som da guerra não ecoa pelo matraquear dos fuzis, como em Kharkiv, Zaporizhzhia e Dnipro - transformadas em campos de batalha, onde nacos de terra são disputados palmo a palmo pelo exército russo e as forças armadas ucranianas, com auxílio de voluntários dos dois lados. Aqui, a 600 quilômetros do front, o risco são os mísseis e os drones disparados pela Rússia. _
Cicatrizes do conflito também são visíveis
Na rotina quase normal das duas cidades, as marcas do conflito são sutis: aparecem no rombo que rasga a fachada de prédios, como o do Gabinete de Ministros, sede administrativa do governo, atingido entre o sexto e o sétimo andares no dia 7.
Estão nas estátuas e monumentos envelopados, nas barricadas improvisadas com concreto e sacos de areia, em frente a edifícios e nos passos apressados dos pedestres quando o toque de recolher se aproxima.
Há regras, normas e leis específicas a serem observadas. É proibido filmar ou divulgar fotos e vídeos de movimentos militares ucranianos, locais de ataques ou bombardeios, nomes de ruas, paradas de ônibus, lojas, fábricas, instalações civis e militares. As penalidades são de até 12 anos de prisão.
As imagens que ilustram esta reportagem, por exemplo, do buraco aberto por um drone russo na sede do Gabinete de Ministros, só puderam ser divulgadas depois que os jornalistas deixaram o país - assim como boa parte do conteúdo lá gravado. É uma tática para não revelar ao inimigo dados sensíveis que possam ser usados como alvo.
O país vive sob lei marcial: só é permitido transitar pelas ruas entre 6h e meia-noite. É recomendado baixar, no celular, um aplicativo chamado Air Alert, que permite rastrear alarmes de ataques aéreos no mapa da Ucrânia em tempo real e que faz disparar uma sirene diante de uma iminente ofensiva.
Engana-se quem pensa que o governo move-se todo na batida do esforço de guerra. Obras, como a ampliação da rodovia entre Lviv e a fronteira polonesa, estão a pleno, há o lançamento de uma plataforma digital para a área da educação e estratégias para aumentar as exportações de trigo, milho e cevada. Como disse a ZH uma autoridade do governo, é preciso que o país continue existindo quando a guerra terminar. _
Cansaço, persistência e revolta com a situação
A relativa normalidade com que os ucranianos convivem com o conflito aparece em diferentes falas dos moradores.
- Não vou para o abrigo, se um míssil quer nos atingir, que atinja. É meu país e não vou embora - conta uma jovem que prefere não se identificar, refletindo um sentimento ouvido com frequência em Kiev e que resume cansaço, negação e revolta.
Para ela, mostrar que a vida está o mais normal possível é uma forma de enviar uma mensagem aos russos de que eles não conseguiram quebrar a alma do país. Mas também é uma oportunidade de sinalizar aos compatriotas no front de que alguém os espera.
Outra ucraniana, Olena Vladyka, 29 anos, morou na capital, onde mantém o apartamento. Desde o início do conflito, mudou-se com o marido para Lviv. Ela reflete sobre a aparente ambiguidade de viver em meio à guerra - entre a normalidade cotidiana e a constante ameaça:
- Um dia, você está em um restaurante: vida normal. No outro, vai para o abrigo: é a guerra. Para nós, não está dividido. Aceitamos que vivemos no meio da guerra.
Olena dirige uma agência especializada na busca genealógica, voltada à identificação de parentes de brasileiros na Ucrânia. De tempos em tempos, viaja para o Exterior. Esteve no Brasil, e, nestes dias de setembro, iria à Grécia. Seu marido, em idade militar, está proibido de sair da Ucrânia.
Advogado, até agora não foi chamado a lutar. Os primeiros a pegarem em armas foram homens com experiência em combate ou voluntários.
É o caso de Alexander Nosachenko, executivo que trabalha para uma empresa de gestão de investimentos, que trocou o terno e a gravata pelo uniforme militar quando o confronto começou. Mandou a família para o Exterior. Atuou em um grupo de atiradores de elite para ajudar a defender Kiev. Atualmente, de volta ao mundo corporativo, vive esse sentimento: a guerra segue, pessoas continuam perdendo suas vidas, mas a rotina coexiste:
- Kyiv está 600 quilômetros distante do front, mas, ao mesmo tempo, temos drones e mísseis russos atacando a cidade. Basicamente, você não pode pensar durante todo o tempo na guerra. As pessoas desfrutam a vida em paz. Ao mesmo tempo, depois de uma hora, estão ajudando os amigos e familiares no front, enviando-lhes o que precisam.
"Temos de lutar"
A família de Alex retornou a Kiev, e os filhos, à escola:
- Quando você vai dormir, não importa onde esteja, não há 100% de garantias de que irá acordar no outro dia. Há muita chance de que um míssil de cruzeiro ou balístico, que atingem grandes velocidades, não seja interceptado, ou de que um drone caia em uma rua, em uma casa. Mas não temos outra chance. Temos de lutar. _
Resiliência está presente até nos eventos
Certa resiliência é evidente nos eventos. A Premier League da Ucrânia, principal competição de futebol, só recomeçou este ano, depois de mais de três de suspensão. Na semana em que ZH esteve na Ucrânia, ocorreu a 5ª Cúpula de Primeiras-Damas e Cavalheiros, que reuniu autoridades de Áustria, Dinamarca, Estônia, Lituânia, Finlândia, Sérvia e Alemanha.
Os discursos no palco de um antigo arsenal transformado em centro de eventos foram silenciados pelas sirenes.
Às 11h (5h em Brasília), de forma ordenada, os palestrantes e a plateia caminharam até os abrigos localizados no subterrâneo.
Conversa tranquila
ZH ficou refugiada no mesmo recinto em que estava Olena Zelensky, mulher do presidente Volodimir Zelensky, e outras primeiras-damas. Sentadas à mesa, elas conversavam calmamente, enquanto seguranças as rodeavam, até que as sirenes cessassem. Passados 15 minutos, a mestre de cerimônia foi até a delegação e anunciou que o perigo havia passado. A nós, coube ficar de olho no aplicativo, a indicar que a região de Kiev havia deixado de ser vermelha. _
*Viajou a convite da União Europeia.
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