sábado, 27 de setembro de 2025


27 de Setembro de 2025
COM A PALAVRA - Fernanda Oliveira

Professora do programa de pós-graduação em História da UFRGS que assina o enredo da Portela para o Carnaval 2026

"A Portela quer dissipar a névoa que cobre as experiências negras no Sul"

O Rio Grande do Sul vai atravessar a Marquês de Sapucaí. Não com uma delegação de sambistas, mas com sua própria história contada pela Portela, uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro. Parte do que será visto vem dos saberes de uma gaúcha: a historiadora Fernanda Oliveira, que assina o enredo O Mistério do Príncipe Bará: A oração do Negrinho e a ressurreição de sua coroa sob o céu aberto do Rio Grande.

Camila Bengo - Como ocorreu o convite para você assinar o enredo da Portela?

Eles já vinham com um projeto de descentralizar narrativas, fugindo dos eixos Sudeste e Nordeste. Nesse mapeamento, chegaram ao Rio Grande do Sul. A escola entrou em contato com o setor cultural do Estado, e fui convidada a participar do processo. A Portela organizou uma reunião com historiadores que pesquisam os diferentes grupos étnicos do RS para que cada um apresentasse a história e as características desses grupos à equipe do carnavalesco André Rodrigues. Foi uma conversa rápida. Dois dias depois, o André me mandou uma mensagem pedindo para aprofundar o assunto, pois havia gostado do que ouviu. Eu aceitei, mas imaginava que seria uma espécie de consultora histórica. Porém, (o André) me convidou para assinar o enredo com eles, o que foi uma grande e bonita surpresa.

Como tem sido equilibrar a pesquisa histórica com a ludicidade que o Carnaval permite e exige?

Tem sido um desafio. O meu trabalho tem sido esse exercício de negociação: eu apresento o que é próprio da ciência histórica, aquilo que tem compromisso com as fontes documentais e de memória, e vamos negociando o que é possível entre a história e a arte, que é o que comanda a narrativa carnavalesca. Porém, existem elementos que nós, historiadores, consideramos inegociáveis na narrativa. Um desses elementos é a singularidade do batuque gaúcho, muito diferente do candomblé, de onde vem a maior parte das referências da equipe da Portela.

O enredo tem no Príncipe Custódio um eixo importante. Poderia explicar quem ele foi?

Custódio é um africano que chega ao RS por volta de 1870 como um homem negro livre e jovem. Isso é especial, porque a maioria dos africanos que chegava aqui nessa época, além de serem escravizados, já tinham mais idade. Ele entra no Brasil por Salvador e depois chega ao RS, vindo se estabelecer em Porto Alegre. É provável que ele tenha recebido a alcunha de "príncipe" por conta do grande conhecimento que tinha sobre a cura de doenças, apesar de jovem. Outra possibilidade é a sua participação em irmandades religiosas como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Negros, que tinha cargos de rei, rainha e príncipe.

De que forma as histórias do Príncipe Custódio e de outras figuras do Estado serão abordadas?

A ideia é pensar essas histórias como um ciclo que se reinicia na sociedade gaúcha atual, olhando para as possibilidades de vida da nossa juventude negra, que é potente e está produzindo coisas maravilhosas. A Portela quer dissipar a névoa que cobre as experiências negras no sul do Brasil.

Temos muitos personagens negros históricos que são pouco difundidos. Por que as contribuições negras são negligenciadas pela historiografia oficial do Estado?

A resposta mais direta é o racismo estrutural que atravessa o Brasil. O país nega a construção feita por grupos racializados, como indígenas e negros, e isso se reflete em todas as áreas, incluindo a produção de conhecimento. Historicamente, o poder de escrever a história esteve concentrado em mãos brancas.

Vocês projetam que, a partir do desfile, será construída uma nova versão do Estado?

Não tenho dúvidas. A Marquês de Sapucaí é o maior palco de enunciação que existe, pois o Carnaval é a maior festa do mundo. Nossa segurança vem do fato de que as fantasias e todos os elementos estão sendo construídos a partir de uma narrativa de presença negra no Rio Grande do Sul. O desfile vai comunicar visualmente uma história de protagonismo e resistência que o restante do país desconhece. Nossa expectativa é de que seja forte o suficiente para pluralizar a visão que se tem sobre o RS.

O Carnaval, além de festa, é uma manifestação identitária do povo negro. Como você percebe a relação do RS com essa expressão?

A relação é intensa. O Carnaval não nasce como uma festa negra, mas os negros foram se apropriando dele. A partir dos anos 1930, quando as grandes sociedades da elite branca se afastaram do Carnaval por conta de crises econômicas, os negros ocuparam as ruas com os seus cortejos. Desde então, o Carnaval ganhou essa identidade. Na década de 1940, com o surgimento das escolas de samba, se tornou uma festa negra por excelência. O RS tem uma tradição muito forte nesse sentido. O Carnaval de Pelotas, nos anos 1980, foi considerado o terceiro maior do país. Esse cenário mudou porque não houve investimento no Carnaval, que precisa de dinheiro para existir.

Houve recentemente uma polêmica em torno do apoio financeiro do governo do RS ao Carnaval da Portela. Como você enxerga esse episódio?

Para mim, o aporte seria natural, pois o Carnaval será uma grande vitrine para o Estado, poderia incentivar o turismo e a economia. Além disso, esse aporte possibilitaria que os gaúchos participassem do desfile da Portela, o que faria dele uma manifestação efetiva da presença negra no RS. Esse era o desejo da Portela: levar a população para o desfile, ter lideranças do batuque passando pela Sapucaí, ter os jovens negros gaúchos construindo junto esse Carnaval. 

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