
16 de Agosto de 2025
CARPINEJAR
Onde você morreu é sua naturalidade
Nossa maior escritora de todos os tempos é ucraniana: Clarice Lispector. Um tapa na cara da xenofobia. A autora dos mistérios mais profundos nasceu numa família judaica russa que perdeu suas rendas com a Guerra Civil e se viu forçada a emigrar diante do antissemitismo - que, à época, já resultava em extermínios em massa.
Ela dizia jamais ter pisado na Ucrânia: foi carregada no colo. Assim como o mais influente cantor francês é filho de imigrantes armênios que se refugiaram em Paris das perseguições turcas: Charles Aznavour.
Fruto do exílio, ele uniu um país estrangeiro inteiro. Repatriou um povo descrevendo como ninguém os hábitos e as esquinas parisienses: as ruas molhadas de Montmartre, os cafés onde o romance é servido com pressa, os quartos de pensão onde as paixões desafiam o tamanho estreito da cama.
O Frank Sinatra da França se apresentou até morrer, aos 94 anos. Compôs cerca de 850 canções (entre elas, 150 em inglês, 100 em italiano, 70 em espanhol, 50 em alemão). Vendeu mais de 200 milhões de discos. Consagrou a chanson como o gênero mais tocado. Transformou sua rouquidão improvável em potência vocal. Girou o mundo encantando multidões - e fez um show em Porto Alegre, no Araújo Vianna, aos 89 anos, em maio de 2013.
Tanto Clarice quanto Charles inventaram seus nomes. Ela é Chaya. Ele é Shahnour. E tudo isso me leva a crer: a naturalidade deveria vir depois na certidão. Não como um carimbo eterno do local do nascimento, mas como uma homenagem ao lugar onde você escolheu morar.
Às vezes, o berço coincide com o porto predileto. Porém não é regra. Pode ser apenas um endereço de passagem, o ponto de partida para as experiências que se consolidaram em outro destino.
A verdadeira origem talvez esteja no lugar onde você gostaria de se despedir. Mais no aceno final do que no que está escrito no cartório. Mais no que é gravado no olhar de quem o chama pelo nome na padaria do que no registro oficial.
Seu berço é onde a sua ausência é mais sentida. A cartografia onde nascemos é acidental, já aquela pela qual optamos representa um gesto imperioso de vontade. É onde nossas manias são compreendidas. Onde nossos silêncios são lidos. Onde somos apelidados com o diminutivo certo.
Quem nunca mudou de cidade e sentiu, enfim, que estava retornando para casa, mesmo sem jamais ter estado ali? Quem nunca se reencontrou numa rua desconhecida, como se alguém tivesse alfaiatado a cidade sob medida para o seu corpo?
Você é batizado pelos pais, e depois se rebatiza sozinho. Paz é território. É fincar a agulha no mapa e constatar: "Aqui eu me percebo mais vivo."
O pertencimento não é um carimbo. É uma sensação. É quando o lugar o escolhe de volta. O mais importante não é o marco zero, e sim o paradeiro em que você se nota confortável, confiante, espontâneo, respeitado. É o grão de areia no universo em que você amou, constituiu família e foi feliz.
É a paragem onde você decide morrer, deixar memória, seguir vivendo na saudade dos mais próximos. Não há como impor a geografia. Ela também é um caso de amor. O sotaque ecoa da alma.
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