
O oceano que liga o pai ao filho
Nem sempre temos a rara chance de surgir no trabalho paterno para uma homenagem surpresa.
Experimentei esse privilégio. Meu pai é o único gaúcho na Academia Brasileira de Letras (ABL). O secretário-geral da instituição, Antonio Carlos Secchin, convidou-me para ser painelista de um ciclo sobre Carlos Nejar. Agendamos a data e ele pediu segredo. Ainda brincou: "Filho de peixe, oceano é".
O encontro se deu na terça-feira, no auditório Raimundo Magalhães Júnior, na sede dos imortais, no Rio de Janeiro.
Meu paizinho, de 86 anos, magrinho, passarinho sábio no alto da árvore, cabeça raspada como a minha, de mirada faiscante e penetrante, com mais de cem obras publicadas em todos os gêneros (poesia, romance, conto, novela, teatro, ensaio), sentou-se na fila da frente, reservada às autoridades. Minha maior autoridade.
Quando me viu subindo ao palco, sentiu na pele um de seus inúmeros arrepios do dia. Arregalou a boca, demonstrando espanto mais com os lábios do que com os olhos. Enquanto eu arrumava o microfone para a minha altura, lembrei que a minha primeira palestra aconteceu na Feira do Livro de Porto Alegre, justamente sobre a sua lírica, em 1999. Na época, eu gritava para superar a timidez.
Recordei também as apresentações escolares, em que o procurava na plateia pelas frestas da cortina.
Não era apenas um discurso, porque rebobinava nossa história juntos. De esperança e de cadeiras ocupadas nos momentos cruciais da existência.
Eu desfrutava do apogeu de devolver o meu carinho, prestar um reconhecimento muito além do recanto familiar, no lugar sagrado em que ele atua, entre seus pares.
O público atento formava um círculo de notáveis, com escritores como Ana Maria Gonçalves, Antônio Torres, Miriam Leitão e Rosiska Darcy. Prometi a mim mesmo não encarar o pai durante a minha fala: duas crianças tensas, assustadas com os relâmpagos das palavras, que certamente ricocheteariam seu clarão no nosso coração.
Evitei o contato visual, embora fosse o que mais desejava. Como queria testemunhar o pai sendo reverenciado, agora em minha condição de filho adulto.
Respirei fundo e expliquei que meu pai escreve para não morrer, escreve para lutar contra a finitude, escreve para se manter desperto e lúcido, escreve como um animal da linguagem, furioso pela sobrevivência - já que, quando jovem, recebeu o diagnóstico de que contava somente com seis meses de vida. Aquilo mexeu com suas crenças. Desde então, não parou de deixar testamentos compulsivamente, a preencher as estantes e adiar o seu corpo na cova aberta.
Conforme os ritos da ABL, a produção do evento insistiu que eu preparasse a conferência por escrito. Solicitava, inclusive, um resumo com antecedência. Eu disse que improvisaria; ninguém me levou a sério. No final, com os aplausos de pé, meu pai me abraçou, absolutamente fragilizado pela sucessão de elogios, e me fez um apelo:
- Me dá o que escreveu?
Alcancei as folhas. Ele olhou, olhou e concluiu:
- Mas não tem nada nelas!
Eu simplesmente comentei:
- Pois é, meu pai, eu já o sei de cor. Tudo está impresso dentro de nós. Para os outros, fingi que estava lendo. Coloquei meus óculos e virava as páginas com lenta parcimônia. Assim pareceria mais formal.
Ele sorriu. E, por um breve descuido, chorou longamente. _
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