sábado, 4 de outubro de 2025

04/10/2025 - 15h46min
Martha Medeiros

Quem tem medo da vida não experimenta

Teme parecer ridícula e não flerta, não se declara, não arrisca. O que faz uma pessoa ficar enlatada em um avião por 11 horas, desembarcar num lugar desconhecido, comer e beber pagando uma exorbitância em euros, para então voltar para casa percorrendo as mesmas cansativas 11 horas, agora com um monte de dívida no cartão?

Parece irracional, mas a morte é mais irracional ainda: irá nos tirar de cena a qualquer minuto, contra a nossa vontade. Como se rebate essa afronta? Com irracionalidades como o amor, o êxtase, as surpresas. Atravessamos a famosa faixa de pedestre de Abbey Road escutando Beatles nos fones de ouvido porque a morte está à espreita, é assim que a combatemos. Nos emocionando. Nos divertindo.

Encontrando os mesmos amigos uma, duas, mil vezes, para reforçar o afeto. Se apaixonando, para andar na corda bamba. Assistindo a uma ópera, mesmo preferindo o rock. Lutando pelo bem-estar dos outros e participando de movimentos pacifistas, para deixar um mundo melhor lá adiante, quando não estivermos mais aqui.

Criando arte, trilhando montanhas, fazendo filhos, não evitando os livros que nos fazem chorar, não fugindo de nada que nos faça sentir. A morte é absurda, fominha, violenta? Contra-atacamos com um entusiasmo afrontoso.

É preciso ser desassombrado em relação à morte. Se damos a ela muito cartaz, acabamos com medo da vida. Surtar com imprevistos, não falar com estranhos, ser incapaz de se encantar com o novo. Não viajar. Apegar-se de forma lunática à família como se ela fosse o único refúgio protegido. A paralisia e o tédio falsificam a ideia de tranquilidade. Quem tem medo da vida não experimenta. Teme parecer ridícula e não flerta, não se declara, não arrisca.

Perde o valor do tempo e consagra todos os dias à mesma rotina, às mesmas falas e hábitos. Religião deixa de ser um conforto espiritual para ser um escudo, a pessoa dá procuração aos santos para agirem como opressores e assim evita a tentação de uma alegria que arrebate – o “muito” lhe assusta.

Ter consciência plena da morte impulsiona nossos desejos hoje mesmo, não fazemos estoque para a eternidade. Encoraja nosso autoconhecimento e nos ajuda a descobrir do que somos capazes, alargando nossas coragens. A morte só terá uma única chance de nos vencer, e vai ter que lutar. A troco de quê dar a ela várias vitórias por dia?

Para escapar da morte, a gente muda, volta a estudar, reforça uma opinião e abandona outra, funda uma banda, estica os limites, elege um novo país preferido, um ano é mar, outro ano é deserto, dribla a morte, dribla de novo, retarda a hora de ela atacar – olé! 

Já quem tem medo da vida, em nome de uma ilusória sensação de paz, se esconde embaixo das cobertas e apaga a luz mais cedo.

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