sábado, 25 de outubro de 2025



25 de Outubro de 2025
REPORTAGEM

REPORTAGEM

A mesma tragédia climática que piorou a crise dos CNPJs na Farrapos, via histórica de Porto Alegre, hoje com mais de 200 lojas vazias, trouxe uma boa nova. Ela entrou no radar de programa de moradia para a pessoas de baixa renda atingidas pela cheia

Abandono

Enchente piorou avenida mas trouxe esperança com novos moradores

Guilherme Gonçalves

A fuligem dos ônibus que passam pela Avenida Farrapos, em Porto Alegre, escurece as fachadas de prédios em estilo Art Decor erguidos na década de 1940. A falta de cuidado com esses edifícios esconde a sua beleza e faz com que o reboco das estruturas caia nas calçadas, tornando ainda mais cinzenta a avenida.

Grande parte dessas construções hoje está desocupada e segue com marcas da enchente que atingiu a cidade em maio de 2024.

No trecho entre o Viaduto da Conceição até a estação do Trensurb, no encontro com a Avenida A.J. Renner, foram contabilizados 211 pontos comerciais no andar térreo vazios. São as conhecidas "lojas de rua", que no passado abrigavam negócios na via, inaugurada em 1940 como a mais moderna da Capital.

João Carlos Zago, 85, conserta radiadores desde 1967 na Avenida Farrapos. Há 15 anos, sua empresa atendia uma média de 20 motoristas por dia. Hoje, se chegam cinco carros para conserto, é muito, diz o empresário.

- Havia várias concessionárias na minha volta. Elas foram todas embora. Tinha casa de autopeças, amortecedor, vidros, para-brisas. Elas foram para onde tem movimento bom - diz Zago.

A família da aposentada Maria Emilia Rivaldo, 71, é dona do edifício Centro Empresarial Farrapos, onde, por anos, funcionou a antiga Casa Dico, tradicional revenda de carros da Chevrolet. Disputada no passado, a construção próxima ao Viaduto da Conceição está agora cercada por placas de "aluga-se" de diferentes imobiliárias.

- Começou um movimento de exigência das montadoras, que viram Porto Alegre crescer para outras regiões. Foram para mais perto de seus clientes. Quando abriram a Terceira Perimetral, aquilo ali se tornou uma área interessante para elas. A Farrapos envelheceu e não houve tentativas da prefeitura para continuar tornando essa área interessante - reclama.

Problema antigo

Em 2009, a situação da Farrapos já não era boa para o setor. Naquele ano, Zero Hora mostrou que grandes marcas haviam deixado a avenida. De lá para cá, o quadro se agravou.

Presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL-POA), Irio Piva reforça que o abandono da Farrapos ficou ainda mais evidente depois da enchente do ano passado. Ao contrário de outras áreas da cidade que foram afetadas pela cheia - onde imóveis foram limpos depois da tragédia climática -, grandes prédios da avenida seguem marcados pela água barrosa que atingiu 1m20cm.

- Todo o 4º Distrito sofreu muito com a enchente, inclusive a Farrapos. Mas a avenida já vinha sofrendo antes. O lugar ficou feio, degradado e desvalorizado - diz Piva.

Edifícios atingidos pela cheia foram invadidos e furtados. Para evitar que isso volte a ocorrer, alguns proprietários começaram a lacrá-los com paredes de tijolos. Dos bairros pelos quais a Farrapos atravessa, apenas o Floresta teve aumento no número de locações nos últimos seis anos. Segundo o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis (Secovi-RS), grandes imóveis comerciais no São Geraldo e Navegantes foram devolvidos em agosto de 2024, depois da enchente.

Desestímulo

Nos últimos anos foram abertos postos de combustíveis e uma concessionária, erguida depois da enchente no terreno da antiga Ribeiro Jung. Presidente do Secovi-RS, Moacyr Schukster diz que o estado de abandono dos prédios antigos afasta interessados em investir na avenida. Para que as estruturas sejam reformadas, sugere incentivos fiscais.

- Teria de haver uma modificação na utilização dessa avenida, a começar por um estímulo fiscal ao retrofit (revitalização de prédios). Se a prefeitura estimulasse isso, teríamos o reaproveitamento de prédios. Outro grande problema é a falta de lugar para estacionar na Farrapos. Isso é fundamental para o comércio - afirma Schukster.

Novos planos

Simone Camargo, dona da Imobiliária Farrapos e também vice-presidente do Secovi-RS, diz que o preço do aluguel de apartamentos de um dormitório na Farrapos gira entre R$ 600 e R$ 800. Para venda desse tipo de unidade, os preços anunciados variam entre R$ 150 mil e R$ 170 mil. Mesmo com o comércio enfraquecido, a empresária afirma que a Farrapos tem ganhado novos moradores desde a enchente.

Apartamentos anunciados na avenida se encaixam na faixa de valor do programa Compra Assistida, do governo federal, destinado a pessoas de baixa renda que foram atingidas pela cheia. Em uma "dança das cadeiras", apartamentos deixados por quem morava na Farrapos até a enchente agora são ocupados por pessoas que deixaram a região das ilhas.

O novo plano diretor de Porto Alegre, apresentado na Câmara de Vereadores este ano, prevê a construção de prédios de até 130 metros de altura, o que poderia trazer um adensamento maior para esta região. Para o arquiteto Lucas Obino, isso ajudaria, mas não é o suficiente.

Via mais caminhável

Segundo o profissional, a solução para a Farrapos estaria no que ele chama de "caminhabilidade". Além de poder atravessar a cidade de carro, o porto-alegrense que ali convive poderia ir a pé aos bairros Moinhos de Vento, São João e Higienópolis.

- É uma boa via para caminhar. É plana, mas é feia e caótica. O grande problema é a barreira de corredor de ônibus. Torna a Farrapos uma via apenas de passagem. No passado, ela era uma via de costura urbana e de permanência. Além desse caráter de terminal, o corredor de ônibus cria essa barreira - diz Obino.

Revitalização

Para resolver isso, o arquiteto sugere o fim do corredor de ônibus e o alargamento das calçadas. Para que os coletivos sigam com preferência no tráfego, uma faixa azul seria destacada junto à calçada, como já ocorre em outras áreas da cidade, trazendo o movimento das paradas para o calçamento, junto ao comércio.

A atual gestão municipal diz estar desenhando um novo projeto para revitalizar a avenida. As obras seriam bancadas por um financiamento com bancos internacionais.

Entre as alterações citadas pelo secretário municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, estariam melhorias nas calçadas, plantio de árvores e instalação de novo mobiliário urbano. Remover o corredor de ônibus ainda estaria sendo estudado, diz o secretário

- A questão do corredor tem que discutir. A Farrapos, pela sua complexidade, exige estudos técnicos mais aprofundados. Há o propósito de incrementar a avenida. Envolve estímulos para melhorar os prédios que ali existem. Uma pintura nas fachadas já resolve bastante. Vamos ouvir a comunidade antes de qualquer coisa - afirma Schirmer. _

"O que era ruim ficou péssimo"

Antônio de Conto, 69 anos, é dono do Hotel Ivo De Conto, que existe há mais de oito décadas na Avenida Farrapos. Neto do fundador, ele aponta a criação dos corredores de ônibus, há 40 anos, como o início da decadência.

Para a realização desta, obra canteiros com árvores foram derrubados e parte do calçamento que ainda era formado por paralelepípedos foi trocado por asfalto.

- Foi o começo da decadência. A avenida hoje é feia, e isso afasta as pessoas - lamenta o empresário.

Segundo De Conto, nem mesmo a proximidade com o aeroporto Salgado Filho tem ajudado a atrair clientes ao seu empreendimento.

- Atendemos muito pouco quem vem de fora. A entrada da cidade está muito feia, horrível. O pessoal passa longe daqui. Estamos sofrendo há muito tempo. À noite, não podemos nem indicar um lugar para jantar. Após a enchente piorou tudo. Muitas lojas fecharam. O que já era ruim ficou péssimo - desabafa o proprietário do tradicional hotel. _

"Tem edifícios bons, negócio é movimentar"

A Farrapos conta com moradores antigos como a aposentada Tina Gregório, 70 anos. Do sexto andar de um edifício de 15 pavimentos, ela viu as mudanças na paisagem da Farrapos nos últimos 36 anos.

Segundo ela, as pessoas têm medo de empreender na avenida.

- O povo gosta de ver coisa bonita, não gosta de ver tristeza. O negócio é movimentar, tem edifícios bons - diz Tina.

O prédio em que Tina mora fica na esquina com a Avenida Presidente Franklin Roosevelt. Ali, diz que faz tudo a pé, mas somente até as 18h. Quando o sol se põe, as calçadas ficam vazias e a sensação de insegurança predomina na avenida.

É a principal queixa de comerciantes e moradores. Comandante do 9º Batalhão da BM, o coronel Hermes Völker diz que a Brigada tem feito ações na região, especialmente no loteamento Santa Terezinha, conhecido como Vila dos Papeleiros, para coibir assaltos e tráfico.

A Guarda Civil Metropolitana promete melhorias a partir de um ponto fixo no Viaduto da Conceição. 

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